COSMOGRAFIAS, A HISTÓRIA E OUTRAS CORES
Para além destes traços, os seus percursos diversificam-se: Beatriz Brum, que estudou Artes Plásticas na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, vive e trabalha em São Miguel; Isabel Madureira Andrade, que estudou Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, vive e trabalha em Lisboa; João Miguel Ramos, que estudou Pintura na Faculdade de Belas-Artes do Porto, vive e trabalha entre os Açores e o Porto. Se partem de uma matriz da pintura em sentido amplo, as suas pesquisas pessoais orientam-se também em direcções diversas.
Beatriz Brum assume a imprevisibilidade como essencial no seu processo de trabalho, o qual actualmente toma sobretudo o acetato ou o acrílico por suporte e se centra cada vez mais sobre a luz: num jogo de adição e remoção de camadas de cor, vai evidenciando pormenores e formas, criando obras que se completam pelo atravessamento da luz ou pelos reflexos que o observador cria ao contemplá-las.
Nas obras que agora apresenta, o entendimento da cor como luz tende para uma desmaterialização do suporte: nas caixas de luz, oferece-nos os desenhos iluminados; na instalação para a porta de vidro, joga com outro tipo de escala, com o vazio entre os dois acrílicos e com o atravessamento da luz natural; na projecção de slides, brinca com as inúmeras possibilidades combinatórias da sobreposição de desenhos, desmaterializados já em pura luz colorida em movimento, dando-nos contudo a possibilidade de guardar a combinação eleita num suporte de acetatos sobrepostos — como nos demonstra na obra que, colocada horizontalmente no plinto, recebe e integra o nosso reflexo.
A recorrência de formas ovais no seu trabalho dita a sua atracção por estas imagens de lagoas recolhidas do google maps. Mas, como Beatriz Brum assume, a água das lagoas, tal como a transparência do acetato ou do acrílico, é uma matéria transparente que permite acolher todas as cores e formas sem as condicionar. Todavia, Beatriz Brum não se baseia no referente naturalista da lagoa, mas antes nas imagens digitais destas que circulam pela internet. Assim, a natureza limpa e asséptica das suas obras resulta de um posicionamento do seu trabalho numa denominada arte pós-internet, partilhada por uma geração da imagem na era do ecrã, longo tempo depois de a pintura ter detido o seu monopólio e de esta ter atravessado os campos da fotografia, da televisão e do computador. Num mundo de imagens digitais, esta é agora uma outra natureza onde Beatriz Brum pode recolher os seus estímulos visuais.[1]
Isabel Madureira Andrade actualiza uma noção de desenho como índice, através da técnica de frottagesobre matrizes que colhe do quotidiano. Recuperando o debate sobre a referencialidade e convencionalidade dos signos, as suas obras cruzam a ordem da racionalidade geométrica da grelha com a intromissão do acaso e do erro, em resultados cuja delicadeza se compõe de mistério e silêncio.
Existe em Isabel Madureira Andrade uma suspeição da representação desligada da fisicalidade de um referente, o qual toma como ponto de partida para a sua criação: “algo que possa ser usado para orientação, algo por onde começar.”[2]
No entanto, a ordem integrante do acaso que as suas obras revelam não deixa de ser uma representação, já que nestas busca a revelação dos sistemas de padrões que compõem o mundo. São assim cosmografias que revelam “sistemas de auto-organização da Natureza”, do mais ínfimo para o mais infinito.[3]Ainda que partam de referentes industriais de um quotidiano banal (estratégia herdeira do dadaísmo e do surrealismo), o gesto de resignificação que lhes aplica revela algo distinto: uma ordenação geral, invisível mas subjacente, que se poderia observar numa folha de árvore, na trajectória de uma vida ou na ordenação das estrelas.
Essa busca da ordem estruturante das coisas e dos fenómenos é uma busca de sentido e há nessa revelação (entre os materiais do quotidiano e os desenhos que daí resultam) uma espécie de alquimia ou transubstanciação. O silêncio que irradiam não advém apenas do facto da grelha, como refere Rosalind Krauss, se furtar à narrativa[4]; ele tece-se também da duração do gesto que se adivinha, do estado meditativo nele empregue, da opção pelo uso de materiais frágeis e delicados, de um resultado que revela algo oculto até então na banalidade do quotidiano. As obras que aqui apresenta oferecem-nos, em diferentes formatos, com diversas matrizes e jogando por vezes com o positivo e o negativo de um mesmo referente, desenhos que são literal e metaforicamente revelações.
João Miguel Ramos reflecte sobre um longo debate entre figuração e abstracção, servindo-se para tal de cruzamentos entre a pintura e a escultura. O seu diálogo com a história da pintura é um corpo a corpo com o peso de uma tradição, questionando o que dela pode fazer na actualidade. Ao procedimento de citação tido como característico do pós-modernismo, adiciona um questionar sobre o domínio do ofício, numa tentativa de ultrapassar a mestria de um virtuosismo técnico aprendido. Daí resulta um labor que figura e desfigura, transgride fronteiras de géneros e de suportes, dessacralizando o património que carrega como tentativa de encontrar para si um lugar que não seja redundante e que tenha pertinência — na pintura como no mundo.
Em Pintura Má #19 a tensão entre figuração e desfiguração joga-se no plano bidimensional da tela, forçando-a a acolher diversas linguagens e planos. Mas em Pintura Má #20 o plano azul abstracto (que parece migrado de Pintura Má#19) é assumido como um outdor banal, suspenso num suporte metálico. João Miguel Ramos joga na adição de sucessivas camadas de dessacralização da pintura e seus referentes históricos, o que já vinha praticando ao colocar telas no chão suspensas sobre cópias de cabeças de esculturas clássicas ou ao criar a sua pessoal história da arte em balões. Aqui, esse ataque à tradição pictórica dá um novo passo: na obra Mesa de ping-pong com cabeça, João Miguel Ramos faz da pintura uma superfície horizontal, assumida como uma mesa de ping-pong, onde a cabeça de Adriano roda, olhando distanciada, ironica e omniscientemente o império e o mundo. São inúmeras as potencialidades metafóricas que esta obra abre, desde a reflexão auto-referencial da arte e da história da arte sobre a sua matriz greco-romana (“imprescindível e inadequada” numa história da arte que pretenda vencer o seu eurocentrismo[5]), até à política contemporânea de construção de muros e fronteiras, como o sejam o espaço Schengen, o muro E.U.A./México ou Israel/Palestina. A pintura é assim um plano de jogo para se equacionar a si própria e ao mundo e as fronteiras — políticas ou artísticas — uma convenção, mais ou menos duradoura, tão artificial e arbitrária como uma rede de ping-pong.
Luísa Cardoso Janeiro 2019
[1]Sobre a designação “arte pós-internet”, na qual Beatriz Brum insere o seu trabalho, vejam-se os seguintes textos seminais sobre o tema: Régine Debatty, “Interview with Marisa Olson”, We Make Money Not Art, 2008(http://www.we-make-money-not-art.com/archives/2008/03/how-does-one-become-marisa.php); Marisa Olson, “POSTINTERNET: Art After the Internet”, 2008(https://www.academia.edu/26348232/POSTINTERNET_Art_After_the_Internet); Artie Vierkant, “The Image Object Post-Internet”, 2010(http://jstchillin.org/artie/pdf/The_Image_Object_Post-Internet_a4.pdf).
[2]Isabel Madureira Andrade, Indício. O signo que persiste.Tese de mestrado em pintura. Lisboa: Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 2017, p. 20.
[3]Idem, p, 44.
[4]Rosalind Krauss, “Grids”, October, Vol.9, Summer, 1979, pp. 50-64.
[5]Dipesh Chakrabarty, Provincializing Europe. Postcolonial Thought and Historical Difference. Princeton: Princeton University Press, 2000.