A transmitir de
Deus ex machina. A pintura como acidente
Eduarda Neves*
Houve sempre estas duas espécies de artistas, estas duas espécies de impedimento, o im- pedimento-objecto e o impedimento-olho. Mas estes impedimentos eram tidos em conta. Havia acomodação. Não faziam parte da representação, ou muito pouco. Aqui [em Bram e Geer] fazem parte. Dir-se-ia a parte maior. É pintado aquilo que impede de pintar. [1]
Três pinturas e um andor. Continuidade, passagem e transição entre obras, convocam a ideia de ligação para um território expositivo que se quer implicado entre registos diferenciadores. PM articula um núcleo de pinturas construídas através de processos fotomecânicos transferidos formalmente para a tela. Se, por um lado, é evocado o sentido do trabalho e a lógica da manufactura que acompanha a tradição sacralizadora da pintura, por outro, é ainda esta condição histórica que funciona como dispositivo de enunciação de um certo imaginário da austeridade e de uma ontologia do sacrifício como Andor parece objectivar. Sem qualquer tipo de renúncia ou a evidente procura de um lado certo, todos os campos de trabalho da produção artística são considerados na sua liberdade potencial.
Às obras PM#85 e Andor — já anteriormente apresentadas em espaços distintos — a primeira em 2021 na galeria Fonseca Macedo, e a segunda numa exposição colectiva no âmbito de um projecto colaborativo na cidade do Porto, em 2020 — juntam-se PM#107 e PM#108. Reivindicando uma prática pictórica que se subtrai a qualquer narrativa teleológica, o programa intempestivo que João Ramos nos propõe no Arquipélago — Centro de Artes Contemporâneas, ultrapassa as fronteiras e limites do medium. Através de uma argumentação que subverte criticamente a probabilidade de uma qualquer tese aurática, são expressas uma multiplicidade de interacções conceptuais entre a imagem, os limites da representação e o campo discursivo da pintura. Uma forma de arqueologia histórica vincula a tradição, a origem, a continuidade ou a ruptura. Aparentemente distantes, PM#85 e Andor, tal como PM#107 e PM#108, não deixam de, conjuntamente, nos projectar tanto para uma escala de grandeza e altura como para uma dimensão ascética e religiosa — uma poética da elevação que se afasta de uma qualquer perspectiva revivalista da pintura:
De facto, o que a pintura actual tenta de uma forma autoconsciente é conseguir a intensificação da aura através de uma grande variedade de meios, seja enfatizando a mão do artista, seja criando imagens visionárias altamente individuais que não se podem confundir com a própria realidade ou outra qualquer.[2]
Se, por um lado, podemos dizer, como afirmou Gilles Deleuze para a filosofia, que a pintura não morreu, pois “começar significa eliminar todos os pressupostos”[3], por outro, o capital simbólico e económico que a pintura secularmente herdou inviabilizaria qualquer desaparecimento desta prática. A morte da arte não configura apenas uma narrativa crítica e poética na medida em que constitui, ela própria, o interminável fetichismo e expectativas do mercado e do capital.
PM#107 e PM#108 devolvem-nos a imagem de uma antena registada no Pico da Barrosa, uma zona de elevação situada aproximadamente no centro geográfico de São Miguel, Açores. Este local constitui, paradoxalmente, uma das regiões fortemente marcadas pela densidade turística daquele que é considerado o único arquipélago no mundo certificado como Destino Turístico Sustentável — desordens inseparáveis que estruturam o funcionamento patológico do sistema, iniciativas que registam o grau de aparência necessário ao cumprimento de objectivos que o neoliberalismo impõe por direito próprio. É do intenso crescimento e ainda das cínicas relações entre arte e turismo, que, sobriamente, a obra de João Miguel Ramos nos dá conta — presença e actualidade da lição adorniana — a aporia entre o que pertence à arte e o que se integra na esfera da comunicação. A teia de relações da cultura de massas, entre a adaptação, a dependência e a ordem:
A indústria da cultura é a integração propositada dos seus consumidores a partir de cima. Ela impõe igualmente a junção do domínio específico da arte maior e o da arte menor, domínios que estiveram separados durante séculos. Junção que é desvantajosa para ambos.(…) Tal como foi referido por Brecht e Suhrkamp (…) os produtos culturais regulam-se pelo princípio do seu valor de troca e não pelo seu próprio conteúdo e uma lógica formal intrínseca.[4]
Do processo mecânico que simula a impressão — estabelecendo o erro e o obsoleto como instrumentos de trabalho — à máquina como agente que sobreproduz e expande desmedidamente a informação, é com as falsas divisões entre representação e realidade, documento e ficção, cópia e original, que A Transmitir de nos confronta. Superfícies pictóricas que se organizam em extensas manchas monocromáticas — tomadas por rastos avermelhados — concentram pulsões que se inscrevem tanto no corpo como fora dele. Únicas e anónimas. Naquelas, transparece a apropriação de altas estruturas configuradas em marcas de torres de comunicação e radiodifusão. Figuras, paisagens e objectos associam o projecto expositivo à expansão acrítica da ideologia massificada dos meios de comunicação, assim declarando a arte transfigurada em estratégia publicitária, marketing e propaganda. Um abundante aparelho produtor de consensos promove o funcionamento da engrenagem, zelando pela sua segurança uniformizadora. É ainda o gesto pictórico que aqui recusa a conversão da arte em imagem de um vazio retórico comunicacional ou, se preferirmos, do princípio do negócio que se tem constituído no manual de instruções para um vasto campo da prática artística actual.
Levantar o Andor parece transformar-se no signo da adoração e do sacrifício, exílio metafísico dos fora da lei como de todos os que vivem por sua própria conta e risco. O medium enquanto cerimonial religioso que se impõe como objecto de combate e superação. O sagrado e o profano. Arriscar a escuridão primitiva, a natureza e o mundo animal, as entranhas e as forças elementares da vitalidade esquecidas no tempo dos nossos historiadores. Como um deus ex machina, Andor aproxima-se dos céus para melhor se humanizar — libertar como um golpe de teatro, a catástrofe ou a grande subversão:
O verdadeiro problema reside, antes, no facto de uma grande maioria não querer a liberdade, no facto de até ter medo dela. É preciso ser livre, para chegar a ser livre, porque a liberdade é existência (…). É, então, que o ser humano é livre, e o mundo cheio de coacção e de meios de coacção tem de servir, daqui em diante, para tornar visível a liberdade em todo o seu esplendor, do mesmo modo que as massas da pedra primitiva, pela pressão que exercem, fazem germinar os cristais.[5]
De cada vez que uma obra é salva da corporação da geopolítica mainstream que desenha a agenda do mundo da arte e sempre que o artista não se permite tornar presa fácil da tão aplaudida “carreira”, Andor torna-se no lugar de dádiva e possibilidade de fuga do estereotipo social — um corte que perturba o regime, a lógica e a lei. Apenas resta imaginar uma outra formulação que transforme o cálculo em desejo, a falta em excesso, o domínio em encantamento.
Transmitir de, manifestando uma espécie de sentimento de não-pertença, torna a singularidade da experiência na forma de um lugar comum — um espaço no qual a acção livre se “preocupa com o mundo como um todo”[6] assim acrescentando a energia do desconhecido à grandiosidade do fracasso:
O vazio. Ante os olhos vazios. Fixando-se onde podem Ao longe e ao largo. Ao alto e em baixo. Aquele campo estreito. Não saber mais. Não ver mais. Não dizer mais. Só aquilo. Só aquele muito pouco de vazio. [7]
As dúvidas de sempre — iconografias, épocas, códigos, influências — as dúvidas de um amador, do amador sábio, aquele com o qual sonham os pintores, escreve Samuel Beckett.[8] O pintor e o alfaiate. O caos e a ordem. Le monde et le pantalon.
Repetidamente a mesma estranheza.
*Texto escrito de acordo com a antiga or
[1] Samuel Beckett — Le monde et le pantalon, suivi de Peintres de l’empêchement, Paris: Minuit,1990, p. 56.
[2] Barbara Rose — Americain Paintings: The Eighties. Bufallo: Thoren-Sidney Press, 1979, s.p.
[3] Gilles Deleuze — Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Edições GRAAL, p. 215.
[4] Theodor W. Adorno — Sobre a indústria da cultura. Coimbra: Editora Angelus Novus, 2003, pp. 97-98.
[5] Ernst Jünger — O passo da floresta. Lisboa: BCF Editores, p. 119.
[6] Ernst Jünger — O passo da floresta…, p. 90.
[7] Samuel Beckett — Pioravante marche [Worstward Ho], in “ Últimos trabalhos de Samuel Beckett”. Lisboa: Assírio e Alvim, 1988, p. 17.
[8] Samuel Beckett — Le monde et le pantalon, suivi de Peintres de l’empêchement.., p. 9.
PM# 105 /107 e 108
João Miguel Ramos*
No texto Ohio, 1949, Barnett Newman relata, a propósito de uma viagem aos montes sepulcrais Índios de Ohio, uma experiência de “desorientação por uma multiplicidade de sensações”. Para Newman a paisagem do cume do monte de Miamisburg faltava em comparação com o espaço no interior deste túmulo. As paredes de lama, desprovidas de qualquer motivo que pudesse ser apropriado ou fotografado para ser exposto num museu, invocavam uma sensação singular de espaço. Um lugar que para além de incapaz de ser “visto” só conseguiria ser experienciado no local. A experiência de um “aqui… e mais além” e um “visível… e mais além” 1 de um espaço que Newman declarou como uma experiência de “sensação física de tempo”.
Em PM#105 /107 e 108 a imagem de uma antena é recolhida no Pico da Barrosa, uma elevação situada sensivelmente no centro geográfico de São Miguel nos Açores, local coincidente com uma das zonas de maior trânsito turístico do arquipélago. Numa ilha onde, em 2019, se realizou o desembarque de 571,2 mil passageiros, dos quais 73% corresponderam a voos de tipo territoriais e internacionais2. A proximidade da Antena da RDP do atual miradouro da Lagoa do Fogo no Pico da Barrosa, presume que grande percentagem de quem o visita é confrontada com estas estruturas. A consciência de que a passagem pelo miradouro da lagoa do Fogo pode implicar o encontro com as instalações da antena de comunicações do Pico da Barrosa e de que a atenção sobre estes instrumentos implica um virar-de-costas à paisagem sobre uma lagoa, reconhecida como reserva natural, admitem uma contradição.
O cariz imaterial convocado pelo objeto subentende a impossibilidade de expressão de uma imagem nova e acentua o valor do trabalho na tradição na pintura. A transferência coloca o objeto no interstício entre a reprodução e a unicidade – no sentido em que o seu processo mecânico facilita um conjunto de acidentes na superfície. A retórica analítica da transmissão mecânica de uma imagem sobre um suporte, reconhecido do campo da pintura, aproxima o objeto final da condição de matriz. A pegada na paisagem é reproduzida no transporte do pigmento para a tela em busca de uma prova invariável. E esta prova condenada pelo seu acesso e profundidade do espaço representado.
Se a transferência assumiu anteriormente a função de enquadramento, ela reconhece-se, agora, em si mesma e na sua natureza diagramática. Permite-se registar o comportamento e responsabilidade da decisão na sua construção. A imagem é reformulada e rasurada com a mesma cor que enforma o seu suporte. A moldura em reserva revela a cor de fundo, tradicionalmente empregue na pintura. A condição pictórica do objeto é enfatizada num esforço por um momento contínuo.
Em Onement, conjunto de trabalhos que Newman começa a realizar pela altura da visita a Ohio, noções de espaço e tempo começam a ser aprimoradas em função do que poderíamos considerar uma condição virtual para a pintura. A experiência, de cariz subjetivo, de Newman – na verdade um primórdio para a definição de aura de Walter Benjamin (Didi-Huberman 2017, p.314) – condensa o tempo na experiência de um espaço ou objeto.
1 Didi-Huberman, George (2017). Diante do tempo. Lisboa: Orfeu Negro. P.313.
2 Observatório do Turismo dos Açores (2021). Dashboard Passageiros Desembarcados. A 4 março, 2022, em https://otacores.com/estatistica/passageirosdesembarcados/
3 Didi-Huberman, George (2017). Diante do tempo. Lisboa: Orfeu Negro. P.314.
Publicado como PM# 105 (2022). em Tocar, Suspender, Cingir e Pender…, i2ADS- Instituto de Investigação em Artes, Design e Sociedade, ISBN 978-989-9049-24-6
Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas
13.02 – 24.04.2022
Fotografia: Álvaro Miranda