MANIFESTO AIAÍSTA

ai, ai, ai,
na era da nuance,

a vida é relativamente fácil,
a arte, ligeiramente absurda.
a política é algo preocupante,
a religião, praticamente indiferente.
as modas são ligeiramente enjoativas,
os homens, ligeiramente sensíveis,
e as mulheres, relativamente emancipadas.

tudo parece
apenas ligeiramente
fora do lugar,
tornando uma utopia
tão mais difícil idealizar,
um sonho,
tão mais difícil de definir.

os vizinhos falam por meio de sugestões
se calhar
baixavam a música?
pagavam a renda?
chamava a polícia?’ e o racismo das autoridades é tão débil
que até ficamos com medo que morra
às mãos do globalismo
como
um jantar em família,
um especial de natal,
ou a coisa dos touros.

ai, ai, ai,
na era da nuance,

começas a manhã,
com um duche frio,
uma aplicação de meditação.
10 minutos.
mastiga devagar.
os travões dos autocarros na rua
esfaqueiam-te os ouvidos.
a fila é aqui, minha senhora.
e depois sabes o que é que ela fez?
uma palmada não faz mal nenhum.

a corda está velha,
mais ainda estica mais um bocado.
ainda ninguém perdeu a cabeça,
certo?

a água está quase limpa,
queres um copo?
bebe vinte anos dela,
litro-e-meio por dia.

as músicas são quase distinguíveis.
eu consigo aceitar isso.
mete aquela,
tu sabes,
a do chulo,
com as putas
e o guito.

há famílias
com as casas em cinza.
perderam quase tudo.
os filhos abraçam as mães,
com os seus caps
e a pensar nas susanas.
este foi aqui ao lado,
mas não foi aqui.
toda a gente conhece
alguma espécie de verdade.
alguns sabem contá-la e são convincentes.
outros sorriem e acenam
porque já desistiram de discutir.
isto não é novo.

há rapazes e raparigas,
19, 20, 23, 28 anos,
que quase não acreditam no amor.
e para quê?
para que serve?
não sei, estava na minha casa há anos.
é velho:
5 euros.
é vintage:
50 euros.
eu consigo viver com isto.
esta é uma conquista majestosa,
na era da nuance;
mandar fora o sublime,
ou vendê-lo aos curiosos
pelo preço de uma curiosidade.
mas isto também não é novo.

dizem que já tudo foi inventado.
os nossos génios
são uma espécie de demolidores.
alguns até esburacam paredes.
uma fusão disto,
com um pouco disto e daquilo.
tutti-frutti,
derrubando barreiras,
tutti-frutti,
do

“Triste de quem der um ai
sem achar eco em ninguém.
Os ais da vida e da morte
Ai os ais deste país… ” *

Ai os Ais, ai os nossos ais, os ais da vida e os ais da arte, os ais da pintura, os ais da Escultura. Ai os ais dramáticos e os ais sentidos, os ais do ridiculo e os ais da comédia. Ai os ais de criticar a sociedade, ai os ais cinicos… Ai os ais deste projecto colectivo, desta reunião, desta coleção de desenhos sobre uma visão do mundo teatral e do ridiculo. * Excerto da Cantiga dos Ais de Armindo Mendes de Carvalho

Com paisagem sonora de Ece Canli & Pedro

Com : Arlindo Silva, Jacques Callot, Manuel Queiró, Marco Mendes, João Sarmento, Jules Linglin, Miguel Carneiro, Joséphine Ducat, Teresa Chow, Francisco Mouga, João Baptista, Miguel Jaques, Rodrigo Queirós, Tiago Silva, David Lopes, João Gomes Gago.

Atelier Caldeiras

23 a 30 de Março de 2019